(Vitral com a representação do Espírito Santo na Basílica de São Pedro, no Vaticano: fonte de ciência, inteligência e sabedoria. Ele não prescinde de nenhum dos três.)
O mundo moderno valoriza o que é inteligente (isto é, o acúmulo de conhecimento e domínio da técnica), e não o que é sábio, muito menos santo. Inteligência é, na verdade, capacidade de conhecer a realidade e, portanto, não ter apenas o dom da ciência. Caso contrário nos bastaria, dentre a ciência, a inteligência e a sabedoria, dons do Espírito Santo, que ele portasse apenas o primeiro e dispensasse os demais.
(Frithjof Schuon: segundo Olavo de Carvalho, conhecedor da obra do filósofo suíço, Schuon era um intelectual de grande envergadura e com enorme impacto no Ocidente.)
No seu ótimo e conciso livro O Homem no Universo o filósofo suíço convertido ao islam Frithjof Schuon faz uma reflexão acerca da problemática do conhecimento nos dias de hoje. Para ser mais exato, ele lança um olhar crítico acerca do fingimento de parecer inteligente, uma artificial necessidade que nada mais faz do que dar um contorno elegante à ignorância. Diz o filósofo:
"É feito um monstruoso esbanjamento de habilidade mental para exteriorizar opiniões que não têm nenhuma relação com inteligência; os que por natureza não estão dotados intelectualmente aprendem a fingir que pensam e inclusive já não podem prescindir desta impostura, enquanto os que são dotados correm o risco de esquecer-se de pensar ao seguir a corrente. A aparência de uma subida é na realidade, aqui, uma descida, a ignorância e a ininteligência estão à vontade dentro de um refinamento completamente superficial, e daí resulta um clima que faz com que a sabedoria apareça sob um aspecto de ingenuidade, de rusticidade, de sonho.
Em nossos dias, todos querem parecer inteligentes; preferir-se-ia ser tachado de criminoso a sê-lo ingênuo, se isso pudesse ser feito sem riscos." (p. 151)
Quando reli este trecho não pude deixar de lembrar da educação moderna: necessária para o domínio da técnica, a educação de hoje traz todos, sem exceção, ao exercício do conhecimento. O problema é que conhecimento não passa disso: conhecer, saber, ciência. A capacidade de compreensão da realidade é um salto para outro nível, o da intelecção. A educação de hoje não nos capacita e compreender a realidade, a refletir sobre a existência da qual fazemos parte. Ela nos dá os instrumentos para domínio do mundo sem sabermos o real potencial deste domínio. Por isso a educação moderna, a exemplo da tagarelice que se espalhou pelos meios de comunicação como a internet, dá a ilusão de que sabemos alguma coisa enquanto corremos o grave risco de opinar sobre algo que somos totalmente ignorantes (espero não ser o caso deste texto).
(Domínio da técnica, a ilusão de saber mais do que se entende: o homem-massa de Ortega y Gasset é o protótipo do homem moderno, incapaz de ver o esforço de seus antepassados, mas disposto a agir e opinar sobre tudo.)
"...é preciso sempre começar a sublinhar que 'já se disse muito que...' e que a realidade é totalmente diferente e que por fim se descobriu, e que antes todo mundo estava na 'mentira'. Este estratagema é aplicado sobretudo às coisas evidentes e universalmente conhecidas..." (p. 151-152)
Como se já não bastasse o mundo da opinião, ela ainda por cima joga seu veneno sobre as conquistas pregressas, especialmente, segundo o autor, nas coisas dadas como óbvias. A mentalidade moderna vê a Idade Média como "Idade das Trevas", a despeito dos 262 milhões de assassinatos só no século XX segundo o cientista política Rudolph Rummel ou nas inúmeras conquistas artísticas, científicas e culturais da Igreja Católica; vê no modelo de família "tradicional" um modelo "arcaico" e "opressor" como se as diversas formas de família pregadas por movimentos ativistas fossem da mesma natureza que as que garantem a perpetuação da humanidade e da qual todos nós somos herdeiros, e como se todos nossos antepassados, sem exceção, estivessem mergulhados numa mentalidade preconceituosa e homofóbica; e vê também no estilo de vida burguês (leia-se: moderno, de abundância de bens) o estilo de vida por excelência, como se toda a história pregressa não tivesse sido necessária, entre acertos e muitos erros, para que chegássemos a um nível de conforto material jamais visto da História. Como revela o filósofo espanhol José Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas, hoje assistimos ao que ele chamou de "ascensão vertical dos bárbaros", a majestosa subida do nível de vida do homem comum que ignora todo o esforço necessário empregado na criação dos bens e do conforto que lhe é oferecido. Com trabalho e um pouco de economia, um cidadão de classe média no Brasil pode, por exemplo, lançar-se uma viagem à Paris em dez horas, algo absolutamente impossível para nossa corte imperial do século XIX. Nunca, jamais o homem comum teve tanto poder em suas mãos.
A mentalidade moderna, encobrindo o homem médio (o "homem-massa" de Gasset) com conhecimento, dá-lhe a ilusão de compreender muito mais do que realmente compreende. A ignorância elegante enfeita o baú vazio, dando a impressão de que basta parecer complicado para parecer inteligente.
(Santa Teresa de Lisieux: falecida antes dos 24 anos, foi considerada doutora da Igreja pela sua contribuição à compreensão da revelação cristã através dos testemunhos de um vida simples.)
Schuon nos dá os exemplos dos sábios e dos santos como o contraponto do homem superficial adornado com seu conhecimento artificial. Há uma simplicidade que habita o fundo de nossa alma e da qual não podemos escapar:
"De qualquer modo, por todos os lados há e sempre houve ingenuidade; é impossível o homem escapar-lhe a não ser além do humano, e é nesta verdade que se situa a chave e a solução do problema. [O que importa] é unicamente o fato de que o sábio ou o santo têm interiormente acesso à Verdade concreta; a formulação simples - sem dúvida a mais 'ingênua' para o gosto de alguns - pode constituir o umbral do Conhecimento mais total e mais profundo". (p. 152)
A questão é: de que adianta um universo de conhecimento se a capacidade de compreensão da realidade não passa por um exercício mental, e sim por um exercício espiritual? A sabedoria e a santidade caminham lado à lado. Seria contraditória a existência de um sábio que não tivesse "iluminação", no sentido espiritual do termo, ou um santo que não tivesse sabedoria. Analfabetos foram transformados em Apóstolos, e um pescador tornou-se o primeiro dos papas. Um punhado de ignorantes, no sentido moderno do termo, mudou a face da Terra. Por isso conclui Schuon:
"Se a Bíblia é ingênua, é uma honra ser ingênuo; se os filosofismos negadores do Espírito são inteligentes, não existe inteligência. Por trás da humilde crença em um Paraíso situado nas nuvens há ao menos um fundo de verdade inalienável e, acima de tudo - e isto não tem preço -, uma realidade misericordiosa que não decepciona jamais". (p. 152)
(Genocídio do povo ucraniano na URSS, em 1932-33: sete milhões de mortes provocadas pelos planejadores que julgavam capazes de construir um "mundo melhor".)
Grande parte dos 262 milhões de assassinatos no século XX computados por Rummel provém de ideologias "científicas", principalmente o comunismo, mas também do nazismo e de diversas variantes nacionalistas que, determinando um modelo de homem ideal, eliminaram fisicamente os opositores deste ideal ou os que nele não se encaixavam. Se no passado o homem ingênuo, "bobo" se diria nos dias de hoje, vivia não mais do que 35 anos sob alegadas "ilusões" religiosas, ainda hoje muitos não chegam a este tempo de vida depois de terem vivido o inferno nas mãos dos reformadores do mundo como nos campos de concentração do paraíso igualitário da Coréia do Norte, nas vilas e cidades africanas tomadas por legiões de assassinos de uma facção política ou nas ruas da Síria onde homens, embebecidos por uma caricatura da religião que Schuon professava, tentam implantar à ferro e fogo um modelo de sociedade fascista regado à sangue e tirania. E ainda por cima fazem tudo isto em nome de Deus, como se a matança fosse um plano divino e não ideias engajadas na complicada construção do "mundo melhor".