terça-feira, 30 de agosto de 2016

A ilusão do "fim da História"

(Edição portuguesa do livro de Fukuyama. Editora Rocco.)

Quando li em 2002 o livro O Fim da História e o Último Homem publicado por Francis Fukuyama em 1992 fui seduzido por uma explicação relativamente simples dos acontecimentos do mundo atual. Segundo o autor, o fim da História é o fim da evolução ideológica da humanidade. Atingido o liberalismo, tanto no plano político com a democracia liberal quanto no plano econômico com a economia de mercado, o mundo não teria mais para onde caminhar. Estaria pleno em seu desenvolvimento histórico. Caberia aos homens voltar aos seus anseios menores: sair da luta pelo reconhecimento (que Fukuyama desenvolve a partir do filósofo russo Alexander Kojéve, baseado em Hegel) que levou à construção das democracias, e voltar-se à realização dos mais diversos desejos humanos. Num mundo democrático o homem não teria mais porque lutar pelo reconhecimento do próximo. As democracias garantiriam, através do Estado de direito, o reconhecimento de nosso valor como pessoa, nosso amor-próprio (do termo grego thymos) em relação às demais pessoas. Não haveria ninguém superior a ninguém no plano da lei. Estaríamos todos satisfeitos com nossa condição de cidadão do mundo democrático, e as aspirações por reconhecimento, fonte de conflitos e guerras, seriam canalizadas para nossos desejos pessoais e disputas menores, como o sucesso profissional ou a formação de uma família feliz.


(A queda do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 precipitou a queda dos regimes comunistas e o desmantelamento da URSS. Para Fukuyama, o fim do comunismo e da ditaduras militares no sul da Europa e na América Latina significavam o triunfo do liberalismo em todo o planeta.)
 
A tese de Fukuyama divide o mundo atual em duas porções: o mundo histórico e o pós-histórico. O mundo histórico é composto por países ainda não democráticos, ou seja, que ainda estão caminhando para a democracia liberal. Já o mundo pós-histórico é o dos países democráticos, isto é, que já atingiram o ponto culminante da evolução ideológica. Dentro do mundo histórico e entre este mundo e o pós-histórico ocorreriam os conflitos armados. Fukuyama defende a ideia de que as democracias liberais não permitem guerrear entre si, entrando em conflito apenas com regimes não democráticos. Esta ideia é baseada no artigo Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs do cientista político Michael Doyle (divididos em partes 1 e 2), que realizou um estudo histórico a respeito do tema e concluiu que as democracias, por sua estrutura interna, conseguem contrabalançar ações erradas e interesses particulares de forma e impedir um conflito armado. Caberia ao regime constituído equilibrar o poder político e militar para impedir que um ator ou grupo tivesse excessiva capacidade de decisão. Doyle, por sua vez, baseia-se no famoso livro de Immanuel Kant, À Paz Perpétua.

(Para Fukuyama o liberalismo penetrará, cedo ou tarde, na economia e na política. A injeção de investimentos estrangeiros na China desenvolveu o país, mas não derrubou a ditadura comunista. Esta pode ser uma prova de que a tese do americano esteja errada. Na foto: distrito financeiro de Pudong, em Shanghai.)

Acontece que no livro seguinte Confiança. As virtudes sociais e a criação da prosperidade, de 1995, Fukuyama admite que os sentimentos remanescentes de reconhecimento expressos através da religião, cultura e nacionalidade, por exemplo, continuariam a existir ainda por bastante tempo. As democracias no sentido pleno descritas em O Fim da História ainda demorariam a chegar. Neste livro o autor analisa as diversas formas de economias de mercado criadas sobre formas culturais distintas como EUA, China, Japão, Europa e América Latina. As culturas são modeladoras dos sistemas econômicos, que variam do individualismo norte-americano à mentalidade familista dos chineses e latinos e do senso de coletividade dos japoneses. Mesmo nos países mais desenvolvidos e democráticos o mundo pós-histórico não parece, à primeira vista, tão pós-histórico assim.

A exemplo do comentário de uma revista aqui no Brasil, Fukuyama é severamente criticado por suas ideias, principalmente pelos intelectuais de esquerda. A julgar pelo comentarista, até hoje o autor busca respostas para a sua tese inicial. Fukuyama, no último capítulo do Fim da História, questiona a sustentabilidade do sistema democrático assim que ele for totalmente estabelecido (caso venha a ser). Não ficariam os homens entediados com sua conquista definitiva e começariam mais uma vez a lutar entre si pela chamada luta pelo reconhecimento? Recordo-me que quando li o livro eu questionava se o perigo de um mundo de realizações não seria ameaçado não por seu tédio, mas sim pelas traições internas. As democracias (como qualquer outro sistema político) depende de valores que ela não pode gerar, ao menos não de imediato.

(Os monstros bíblicos Behemot e Leviatã: no primeiro as forças cósmicas sempre firmes e estáveis e no segundo o espírito de rebelião sempre mutáveis. Para Olavo de Carvalho, só Deus pode subjulgar estas forças. As grandes tradições religiosas estabelecem o equilíbrio entre as necessidades do mundo e a ação social, dentre elas o poder político.)  

Ao longo dos últimos quinze anos eu fui muito influenciado pelas ideias e a visão de mundo do filósofo Olavo de Carvalho. Seu melhor livro, O Jardim das Aflições, trás uma análise dos rumos e da decadência da filosofia ocidental que culminaram no fechamento espiritual do homem, isto é, no enclausuramento da perspectiva existencial dentro das perspectivas natural e histórica. O homem moderno, diz o autor, é sufocado pelas dimensões do tempo e do espaço, tem sua compreensão da realidade severamente limitada e tenta moldar o mundo a imagem e semelhança disto. O Estado moderno é a realização máxima deste ideal, através do qual tenta-se moldar as sociedades, seja através da aceitação de que dependemos do conhecimento científico para termos uma vida mais feliz ou das transformações revolucionárias para criar a sociedade perfeita. O problema é que uma via ou outra é a morte da democracia. E Olavo defende que, sim, as democracias estão sucumbindo à tentação de recriar o Império, o poder político unificado antes sonhado pelos antigos monarcas romanos, imperadores mongóis ou ditadores soviéticos. As grandes tradições religiosas da humanidade seriam a grande barreira para esta tentação porque mantém vivas a perspectiva de mistério da existência e resistem, portanto, às iniciativas de controle e administração total da vida. Conclui-se disto que a decadência cultural viria a engolfar as democracias ainda existentes e suprimir as liberdades.

Até a segunda edição do livro, lançado em 1995, o poder do Império analisado por Olavo de Carvalho estava encarnado na sua concepção americana, republicana e maçônica. Mais recentemente o autor revisou esta tese e considera que a ameaça tirânica está corporificada não em um país, mas num plano multinacional ou supranacional: o Império Globalista.

(Assembléia Geral da ONU na sua sede em Nova Iorque: ideal democrático de paz mundial ou ameaça de ditadura global?)

É extremamente exemplar o debate que Olavo travou com o filósofo russo e ideólogo do Kremlin Alexander Dugin. A discussão foi transformada no livro Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um debate entre Olavo de Carvalho e Alexandre Dugin. Os debatedores concordam com a emergência de três grandes poderes mundiais que pretendem unificar o planeta sob o Governo Mundial: o globalismo, o eurasianismo e o islamismo. O globalismo é o poder identificado por Olavo no seu livro O Jardim, mas aqui as duas demais formas de poder são brevemente discutidas. A diferença é que enquanto Dugin está consciente e deliberadamente comprometido com um dos projetos (o eurasiano), Olavo rejeita os três por considera-los opressores. A crítica básica é de que um plano global é impossível, e a tentativa de reformar o mundo inteiro através de um plano unificado deve ser rejeitado de imediato.

É aí que entra a ilusão de Fukuyama. Em seu livro o sociólogo americano não pensa num governo mundial, mas como pode ele descrever um processo histórico que culmine num fim ideológico definitivo se é impossível levar em consideração todas as variáveis que determinam todos os sistemas políticos ao longo de todos os tempos? Como falar de um "fim da História" se não se sabe exatamente como a humanidade começou e, portanto, não é possível fazer um traçado integral do plano histórico de forma a chegar numa conclusão definitiva? A crítica que o historiador francês Lucien Febvre faz à teoria da história das civilizações de Arnold Toynbee no texto Contra "duas filosofias oportunistas da História": de Spengler a Toynbee (1936) toca exatamente neste ponto: "Mas o que são 6.000 anos [tempo das civilizações], quando pensamos que o mundo tem sua origem há dois bilhões de anos, a vida sobre a Terra, há 300 milhões, e o aparecimento do homem há 300.000?"

A ideia de espalhamento da democracia e da economia de mercado proposta por Fukuyama é exatamente o plano globalista. A diferença é que o globalismo, no fundo, não é democrático, e sim utiliza-se do sistema democrático para encobrir seus planos globais. Não foi por acaso que duas organizações do bilionário George Soros, que é acusado de promover ativamente as causas globalistas no mundo, foram banidas da Rússia, centro do poder eurasiano.

(A "Criação de Adão", de 1510, de Michelangelo: as grandes tradições religiosas como base da vida política e defesa da liberdade humana.)
 
A conclusão é genérica mais, penso eu, correta: não é possível traçar planos gerais para mudar um mundo, estabelecer um modelo de sociedade que traga felicidade definitiva a todos. Nem mesmo a ideia de que democracias devem ser espalhadas pelo mundo parecem bem-vindas, seja porque elas depende de valores que não pode criar, seja porque as consequências destas iniciativas são temerárias. Foi o processo de espalhamento das democracias pelo governo de George W. Bush que levou Fukuyama a se afastar do grupo de neoconservadores, como explica no seu livro O dilema americano. Democracia, poder e o legado do neoconservadorismo. Para ele a aventura na Guerra do Iraque (que inicialmente ele havia apoiado em 1998 numa carta aberta ao então presidente Bill Clinton) trazia em seu bojo o ímpeto revolucionário e apostavam na engenharia social como forma de democratizar o Iraque. O plano democrático não pode ser planetário, porque ninguém pode estabelecer metas planetárias. O mesmo é válido para o plano comunista (de onde saíram os neoconservadores) e o plano nazista. Ambos não eram sustentáveis. Este princípio é igualmente válido para os planos eurasiano e islâmico. Ninguém pode traçar planos globais pelo simples fato de que o conhecimento necessário para a realização destes planos é impossível. O conhecimento total foge, inclusive, da nossa própria condição humana: nascemos num determinado momento e morremos num determinado momento. Só Deus tem este conhecimento. Só Ele pode governar a História.

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