domingo, 14 de novembro de 2021

Dia 13 de novembro de 2021

 

          Eu estou com quarenta anos e durante mais da metade de meu tempo de vida realizei uma busca, sem clareza do objetivo almejado, de minha vocação enquanto pessoa. A situação foi ainda mais complicada porque essa busca se confundiu muito com a ideia, profundamente arraigada na sociedade moderna, de vocação profissional, algo muito distinto mas alguma forma integrado à realização plena da personalidade. 

          Por vezes nossa alma recebe como que lampejos de consciência que nos situam nessa busca. São momentos que permitem ver, em instantes bastante precisos, onde estamos na caminhada de nossa realização, um estar no mundo onde vemos a integração de nossa pessoa com tudo o que há, um espécie de mapa cósmico e histórico que nos situa em nossa trajetória de vida. 

          Na obra Retrato de um artista quando jovem, o escritor irlandês James Joyce descreve, com o prolongamento e os detalhes que lhe são característicos, o processo de descoberta de vocação do jovem personagem Stephen Dedalus. Ao ler hoje o trecho a seguir notei o êxtase do personagem e pude lembrar de situações da minha vida que eram análogas à sua experiência:

O seu coração tremeu; a sua respiração tornou-se mais apressada; e um espírito selvagem passou por sobre os seus membros como se ele fosse escalar o sol. O seu coração tremia num êxtase de medo e a sua alma estava num voo. A sua alma estava se alando ar acima para lá do mundo, e o corpo, sabia ele, estava purificado, libertado da incerteza, e se tornara radiante, diluído no elemento mesmo do espírito. Um êxtase deslumbrado de voo tornava radiantes os seus olhos, desordenada a sua respiração, e trêmulos, selvagens e radiantes os seus membros arrebatados pelo vento. (p. 173)

          A experiência de Stephen é a tomada de consciência de quem era e quem queria ser enquanto pessoa. Ele acabara de ser questionado por dois padres jesuítas se não gostaria ser sacerdote, e vagando pelas praias próximas a Dublin foi descobrindo seu verdadeiro caminho através de um turbilhão de emoções, recordações e iluminações.

          Gostaria de dizer muito mais aqui, mas apenas sei que, enquanto estava à rede absorvendo esse momento especial da obra, notava que não estava tão consciente de meu caminho quanto o jovem Stephen com mais ou menos metade de minha idade. Ou como uma então amiga minha que, em 2003, descrevia num e-mail seu momento de êxtase e felicidade profunda enquanto caminhava nas ruas de uma cidade na costa leste do Canadá. Era um anúncio, à vista de todos, de como era feliz, e como aquele momento era revelador de sua bem sucedida caminhada de vida.

          A descrição da iluminação interior do personagem pode identificar muitas experiências reais nesse universo infinito que dimensiona a alma humana, ao exemplo da amiga no Canadá. A iluminação tem como alvo a consciência e se traduz num acontecimento secreto, mas profundamente real e palpável para quem o vivencia. É a sensação fulgurante de estar fazendo a coisa certa no momento certo, de ver a própria vida em sua totalidade onde tudo passa a fazer sentido, e se tem plena consciência de que a caminhada percorrida era a que deveria ter sido percorrida como se houvesse algo de providencial a guiar toda a trajetória de vida.

          A distância entre o momento em que lia James Joyce e a experiência que o escritor narrava no seu livro parecia infinita. Como ontem, o vento soprava de leste, a temperatura estava um pouco amena, e não havia nada de novo nos ares, tanto em seu plano físico quanto existencial. Mas talvez essa seja a grande surpresa: por detrás do dia a dia um universo inteiro vai se revelando, e se caminhamos conscientes de nossa busca, tateando aqui e ali, andando na beira da praia ou perdido numa rua, de repente somos arrebatados e nos vemos com o Livro da Vida em nossas mãos.

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