domingo, 12 de janeiro de 2020

O cotidiano eterno


          Há uma frase de G. K. Chesterton que afirma, não exatamente com estas palavras, que o homem maduro é o que suporta a rotina, esta mesma rotina que em grande parte está voltada ao trabalho. Na época do escrito inglês não era diferente. Faz parte da vida moderna viver em atividade. Modernidade é movimento e desprendimento do ciclo natural da vida; e mesmo as pessoas que vivem uma vida, digamos, "tradicional", dependem do trabalho para viver, e este depende dos ciclos naturais para serem realizados. Daí a maturidade: temos de enfrentar as obrigações concretas e inadiáveis que nos inserem numa aparente ou real mesmice cotidiano, que temos de suportar com fibra o suficiente para não cairmos no desânimo ou estourarmos na revolta.

          Viver, portanto, é viver na rotina por mais excêntrico e mutável que possa ser o trabalho de uma pessoa. Por isto o desempregado não apenas se angustia com a falta do ganha-pão como sente a pressão psicológica de todos os dias ser obrigado a organizar-se mentalmente para atravessar um dia inteiro sem um foco claro e um objetivo que lhe preencha as horas que ameaçam lançá-lo no ócio. Fugir ou ser arremessado para fora da rotina acaba, portanto, por mergulhar a pessoa na desorientação ou no desânimo.

          Chesterton está certo que o homem real é aquele que suporta a rotina, mas o desempregado, o desorientado, aquele que não tem foco na vida prática teria de ser um super-homem para suportar o peso não apenas da cobrança que a vida lhe exige, de sustento material, mas principalmente o caos mental que a falta de foco e sentido lhe provoca. Se o trabalhador tem, como diz o provérbio popular, de matar um leão por dia, o desempregado tem de matar vários para ocupar seu tempo. É uma luta infernal.

          O mais estranho nesta tensão com o cotidiano é a aparente falta de sentido, não apenas do sentido histórico da prática, como também da vida pessoal. A pessoa que sai de férias sente como se estivesse "fora da realidade" e, ao voltar, que está voltando ao "mundo real". O tempo do relógio, uma artificialidade que abstrai em números o ciclo natural do dia, prende-nos como se dependêssemos dele para nos sentirmos vivos e dizer, "sim, a vida tem sentido". O problema é que a vida do movimento, do trabalhar para pagar as contas, do cumprir leis e contratos, pegar filhos da escola e dar aquela atenção básica à esposa ou o marido como se o mundo real se resumisse à prática fria e espiritualmente estéril dominada pelo tic-tac das horas, como se estas brotassem do solo tal qual o trigo ou a cevada, é, em última instância, uma vida sem sentido aprisionada na contagem artificial do tempo. A vida moderna é uma autofagia centrada em si mesma, uma engrenagem falsamente harmônica forjada à sua imagem e semelhança, à imagem do ideal humano do mundo racional administrado que, como bem observamos em faltas de luz, engarrafamentos e enchentes, nunca é o ideal.

          Ser homem é suportar isto, porque este suporte só é possível por conseguirmos ver além da rotina das horas contadas. Porque o homem é primeiro espírito, e ele não pode ser aprisionado pelos afazeres práticos, nem mesmo pelo tempo. Ser homem é ser eterno e ver que nas obrigações cotidianas há, de uma forma ou de outra, um reflexo do amor e da eternidade. Trabalhamos porque buscamos o amor eterno, pagamos as contas pelos mesmos motivos, criamos família porque ansiamos pelo amor que nos escapa dentre os dedos. Ansiamos a todo o instante a perfeição, o Paraíso, que, ao exemplo das experiências totalitárias, é impossível de se realizar neste mundo.

          Nossa rotina não pode ser um fim em si mesma porque sua perfeição é impossível e, portanto, o sofrimento advindo quando fechados nela inevitável. Por isto nossos trabalhos passarão, mas o espírito, aquilo que movimenta as coisas dentro de um tempo administrado, jamais passará.

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