Segue abaixo a tradução livre de uma reportagem da mídia digital católica The Pillar que conta como foi o processo de conversão de um bispo ortodoxo da Ucrânia à Igreja Católica e sua diocese, e também as causas dessa mudança.
Boa leitura!
Na Ucrânia, um bispo entra na Igreja
Como um bispo ortodoxo ucraniano levou sua diocese à comunhão com Roma
(por Anatolii Babynskyi, 6 de setembro de 2022)
(Ihor Isichenko, ao centro.)
O arcebispo Ihor Isichenlko é um bispo incomum. Ele é um intelectual formidável e um estudioso literário sério. Tem sido um líder entre os fiéis ortodoxos ucranianos por mais de duas décadas. E sete anos atrás, iniciou um caminho que levou sua diocese ortodoxa à plena comunhão com a Igreja Católica, mesmo em meio a cismas e fraturas entre os fiéis ortodoxos ucranianos e durante uma guerra que mudou dramaticamente a vida em seu país.
O arcebispo Isichenko entrou em plena comunhão com a Igreja Greco-Católica Ucraniana no início desse ano; as paróquias da diocese que ele liderou são agora parte do Exarcado Católico Ucraniano de Kharkiv e da Arqueparquia de Kiev. Com o status de um arcebispo emérito, Isichenko liderará agora uma filial da Universidade Católica Ucraniana.
A notável história do arcebispo começou décadas atrás, quando a Ucrânia declarou sua independência, a União Soviética caiu e o Patriarcado de Moscou perdeu seu monopólio sobre a religião no país.
Em 1989, a Igreja Grego-Católica Ucraniana, que havia sido destituída de seu stratus legal em 1946, foi legalmente autorizada a existir novamente na Ucrânia. A maior das 23 Igrejas Católicas Orientais em plena comunhão com Roma saiu da clandestinidade.
Ao mesmo tempo, alguns fiéis ortodoxos ucranianos começaram a pressionar por um tipo de autocefalia - por uma Igreja Ortodoxa separada de jurisdição e supervisão do patriarca ortodoxo russo em Moscou.
O movimento não foi homogêneo. Ao invés disso, duas estruturas surgiram no início dos anos 1990 reivindicando jurisdição autocéfala no país: a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (IOU-PK).
Ambas as estruturas possuíam problemas internos. Mas em meados dos anos 1990, a IOU-PK ficou sob liderança do Patriarca Filaret, que durante a era soviética serviu como exarca da Igreja Russa na Ucrânia e foi um dos principais candidatos ao trono do Patriarca de Moscou em 1990.
Com Filaret no comando, a IOC-PK conseguiu estabilizar sua estrutura. Com o tempo, a instituição começou a reivindicar o papel de igreja "estatal" ucraniana.
A IOAU foi menos bem-sucedida na Ucrânia. Em vez disso, concentrou-se nas igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, nos EUA e no Canadá, que com o tempo se retiraram dos assuntos ucranianos. Muitas paróquias se afastaram gradualmente da IOAU e entram na jurisdição de Constantinopla.
Dentro de uma década, a IOAU começou a se fragmentar. Desde o início dos anos 2000, ela existe como uma coleção de dioceses quase independentes unidas apenas por um nome comum.
Em 2018, a recém criada Igreja Ortodoxa da Ucrânia absorveu a maioria das igrejas, clérigos e recursos da IOU-PK e da IOAU. Como a maior estrutura que reivindica jurisdição ortodoxa autocéfala na Ucrânia, ela recebeu um reconhecimento de autocefalia do Patriarcado de Constantinopla em 2019.
Mas nem todos seguiram esse caminho.
A diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que cobria o nordeste da Ucrânia, estava se movendo numa direção bem diferente.
A diocese se tornou um importante centro para o movimento autocéfalo logo depois de sua fundação em 1992. Sua catedral, São Demétrio, em Kharkiv, se tornou ao longo dos anos um centro cultural e educacional que forneceu treinamento teológico para os futuros padres da IOAU.
E sete anos atrás, o arcebispo Isichenko e a diocese Kharkiv-Poltava da IOAU decidiram que as divisões entre as facções ortodoxas ucranianas haviam se tornado muito profundas, e a unidade entre as Igrejas Ortodoxas da Ucrânia era improvável.
A diocese decidiu tornar-se católica - unir-se à Igreja Greco-Católica Ucraniana (IGCU).
Em primeiro de abril de 2015, uma assembleia eparquial declarou que estava "convencida da impossibilidade de unificação canônica com as igrejas ortodoxas ucranianas na diáspora, rejeita[va] formas não canônicas de unificação de igrejas e acredita[va] na perspectiva de uma comunhão da Igreja Ucraniana com as igrejas da antiga e da nova Roma."
Numa requisição formal, a diocese pediu ao sínodo dos bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana "por conselho fraternal para alcançar a comunhão eucarística e a unidade administrativa da diocese de Kharkiv-Poltava da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia com a Igreja Grego-Católica Ucraniana."
O processo para alcançar a unidade não foi fácil; levou quase sete anos. E de acordo com o arcebispo Isichenko, que liderava a diocese desde 1993, nem todos nela aderiram ao plano de unir sua diocese local para a Igreja Católica - em vez disso, algumas paróquias se juntaram a outras comunhões ortodoxas.
"Devo dizer que a maioria dos padres se assustou. Por várias razões: seja pelo medo de perder o apoio do rebanho, devido à falta de compreensão dos fiéis de tal passo, porque estavam sobrecarregados de vários tipos de mitos anticatólicos, ou devido ao conservadorismo humano comum, de medo algo novo," disse ao The Pillar.
Mas "as congregações mais maduras apoiaram a ideia, e agora se juntaram ao exarcado de Kharkiv e a arquidiocese de Kiev da IGCU."
Embora as paróquias tenham sido totalmente incorporadas à estrutura da Igreja Católica ucraniana nos últimos dois anos, o status do arcebispo não era claro até esta primavera, após o início da invasão em larga escala da Rússia na Ucrânia.
"Eu me aposentei e agora sou arcebispo-emérito com a manutenção de minha autoridade como chefe do Collegium do Patriarca Mstyslav, que este ano adquire o stratus de um projeto da Universidade Católica em Kharkiv," explicou o arcebispo.
Desde seus primeiros dias, o arcebispo Isichenko era um figura um tanto atípica na ortodoxia ucraniana. Na época de sua tonsura monástica e ordenação como sacerdote, era professor de história literária na Universidade Estatal de Kharkiv.
Ele liderou uma diocese por 27 anos sem parar suas atividades acadêmicas e docentes. É o autor de tratados acadêmicos sobre a história da literatura medieval e barroca ucraniana, literatura ascética, e a polêmica ortodoxa-católica dos séculos XVI-XVII. Na verdade, ele é um dos maiores especialistas do mundo no seu campo.
Mas para explicar a decisão que sua eparquia tomou - a decisão de se tornar católica - o arcebispo olhou para a história mais recente.
Ele disse que a sabedoria de seus planos não pode ser compreendida sem entender a experiência dos ucranianos ortodoxos durante o século XX e o colapso da União Soviética.
"A restauração da independência da Ucrânia também possibilitou a restauração da IOAU, cujas estruturas na época sobreviveram apenas na diáspora. Mas as igrejas nos EUA e no Canadá estavam bastante esgotadas e não poderiam prover assistência efetiva à igreja reavivada em sua terra natal. Por outro lado, a comunidade ortodoxa autocéfala ucraniana precisava reconstruir a identidade da ortodoxia de Kiev como era antes de sua subordinação a Moscou no século XVII. A tarefa não era reviver, mas reconstruir," disse o arcebispo.
"Ainda assim, as fraquezas nessa tarefa foram imediatamente evidentes: uma base espiritual fraca, uma falta de durabilidade da tradição monástica, etc. A IOAU nunca foi capaz de criar um único monastério ou uma única escola acadêmica séria. E havia vários cismas infames que a igreja sofreu e, o mais importante, esforços constantes dos funcionários do Estado e de algumas forças da igreja para formar uma igreja "estatal". Tudo isso levou à decepção na perspectiva desse caminho."
O arcebispo Isichenko afirmou que se tornou evidente com o tempo que uma tendência permaneceu constante na Igreja Ortodoxa desde os tempos bizantinos, a saber, a inclinação à governamentalização da Igreja e uma maior cooperação entre a Igreja e o Estado.
"Servi como bispo governante na IOAU de 1993 a 2020, quando renunciei. Me convenci de que a ideia da Ortodoxia como uma alternativa ao catolicismo leva à formação de Russkiy mirs - mundos russos em miniatura, ou no sentido pleno da palavra.
"Seja na Sérvia ou na Rússia... Infelizmente, essa tendência também existe na Ucrânia. Tal particularismo suspende a natureza universal da Igreja, sua catolicidade."
O arcebispo disse que sua diocese começou a considerar a perspectiva de unidade com a Igreja Católica quando a agressão russa contra a Ucrânia começou em 2014; afirmou que assistiu ao uso da Igreja Ortodoxa Russa para promover o imperialismo russo.
"O que está sendo feito com a ortodoxia de Moscou é o grande drama do mundo inteiro. A ideologia da 'Russkyi mir' mostra a todas as igrejas ortodoxas o perigo de inverter o sistema de prioridades - a perda de prioridade dos valores cristãos sobre as prioridades nacionais, estatais, políticas ou partidárias," disse ao The Pillar.
Os padres da antiga diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que entraram na Igreja Católica Ucraniana com suas congregação este ano, disseram ao The Pillar que se sentiam seguros de suas escolhas devido à sua confiança no arcebispo Isichenko.
Padre Ihor Lytvyn, que comandou uma paróquia da IOAU em Polatava, explicou que mesmo antes de 2015 as relações entre a IGCU e sua diocese eram amigáveis. Os greco-católicos frequentemente ensinavam no Collegium do Patriarca Mstylav, onde ele recebeu sua educação teológica.
E em sua paróquias, os paroquianos sentiam uma afinidade em relação aos católicos ucranianos, afirmou.
"Não foi surpresa para os meus paroquianos. Então, quando nossa diocese estava em crise, eles se solidarizaram com o caminho escolhido pelo arcebispo. A maioria votou pela transição, embora alguns tenham se afastado da paróquia. Pessoalmente, sempre estive convencido de que se você não é ortodoxo, é um herege, e se você não é católico, é um cismático. Portanto, para mim, nunca houve oposição entre os conceitos 'ortodoxo' e 'católico'," disse o padre Lytvyn.
O padre Oleh Bondaruk, que agora serve na arquidiocese de Kiev da IGCU, foi ordenado sacerdote em 2016, quando a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu diálogo de reunião com a IGCU. Em 2018, sua paróquia optou por se transferir para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, mas Bondurak decidiu se tornar católico.
Padre Bondaruk disse ao The Pillar que seu caminho foi um pouco diferente do de outros clérigos da diocese, o que tornou mais fácil para ele se tornar um padre católico.
"A maioria dos padres que não se juntaram à IGCU foram ordenados anos atrás. E penso que a fronteira mais difícil para uma pessoa cruzar na vida é a fronteira interconfessional. Fui ordenado na época em que a diocese de Kharkiv-Poltava já havia começado seu movimento para se unir à IGCU. Foi minha escolha consciente."
"Por outro lado, embora tenha sido batizado na Igreja Ortodoxa, cresci num ambiente católico romano na região de Khmelnytskyi, e tenho muitos poloneses na minha família. Desde a oitava série, frequentei uma igreja católica romana. Até fui para um seminário católico romano por um ano. Mas depois me mudei para Bovarka, próximo de Kiev, e me afastei um pouco da igreja. Um dia me pediram para dar uma carona para o arcebispo Ihor para Kaniv, e nosso contato deixou uma grande impressão em mim. Assim, me tornei um padre ortodoxo."
O padre Viacheslav Trush de Lozova, na região de Kharkiv, disse ao The Pillar que, diante de uma questão tão difícil, ele e sua congregação buscaram acima de tudo discernir a vontade de Deus sobre qual caminho deveriam seguir.
"Um fator importante que influenciou minha decisão foi também estudar e compreender a experiência da Igreja Católica, me familiarizar com sua doutrina, dogma e história, tanto globalmente quanto na Ucrânia. Portanto, nossa decisão se baseou não apenas na confiança em nosso bispo, mas também no aprofundamento de nosso conhecimento da Igreja Católica," explicou.
Na paróquia, discutimos muitas questões e estudando a história da Igreja. Tudo isso deu frutos. Temos uma atmosfera bastante familiar em nossa comunidade, com o padre e os fiéis discutindo tudo entre si, então não há segredos. Assim, quando anunciei a decisão do conselho diocesano, os fiéis a enfrentaram com confiança em mim e no arcebispo Ihor."
Ksenia Pidopryhora, da Igreja São Demétrio em Kharkiv, foi forçada e deixar a cidade em março de 2022 devido à guerra e agora vive em Lviv.
Ela disse ao The Pillar que sonhava em retornar à sua cidade natal e sua paróquia, à qual pertence desde os seis anos de idade. Pidopryhora afirmou que ela começou com perguntas sobre a nova unidade da paróquia com Roma, mas disse que agora estava favoravelmente inclinada à mudança.
"Em primeiro lugar, foi a familiarização pessoal com o clero e os paroquianos da IGCU em Kharkiv, bem como a observação de figuras bem conhecidas que representam a IGCU no mundo, como o ex-líder da IGCU Lumobyr Husar, de abençoada memória, ou o extraordinário intelectual bispo Borys Gudziak. Suas palavras e ações correspondiam à minha ideia do que deveria ser a vida de um cristão num mundo moderno, vida na unidade. Consequentemente, o desejo de fazer parte dessa unidade era natural."
"Além disso, a própria IGCU como instituição tinha - e tem - uma reputação excepcionalmente positiva pela consistência e unidade, em contraste com a comunidade da Igreja Ortodoxa na Ucrânia, cujas divisões e brigas experimentamos como paróquia. Também, a transparência em responder quaisquer questões do clero de nossa diocese e a própria possibilidade de ver, conversar e fazer perguntas durante o processo contribuíram para uma conscientização da conveniência e lógica dessa 'transição'," disse Pidopryhora.
Apesar de sua tradição litúrgica bizantina comum, existem algumas diferenças litúrgicas entre a Igreja Greco-Católica Ucraniana e a ortodoxia ucraniana. Pidopryhora disse estar grata que as paróquias da antiga diocese de Kharkiv-Poltava mantiveram alguns costumes específicos de culto, mesmo quando se tornaram católicos.
"Felizmente, a ausência de mudanças na ordem do culto e o direito de observar o calendário da Igreja como era antes da 'transição' ajudaram os paroquianos de nossa Igreja a se integrarem suavemente na vida paroquial como membros plenos da IGCU," explicou ela.
O bispo Vasyl Tuchapets, exarca de Kharkiv da IGCU, disse ao The Pillar que as diferenças litúrgicas entre as paróquias da IGCU e as antigas comunidades da diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU não eram fundamentais, mas diziam respeito a nuances rituais.
Mas em todos os outros aspectos, as comunidades estão plenamente integradas na vida do exarcado. Seus pastores participam em retiros e encontros conjuntas, cursos de formação do exarcado e outros projetos da Igreja.
De sua vez, o padre Trush disse que a "integração" tem sido uma experiência positiva para ele e sua paróquia.
Sua vida paroquial antes parecia isolada - cercada pelas divisões e políticas das Igrejas Ortodoxas na Ucrânia. Mas agora, disse, as coisas haviam mudado.
"Agora sentimos que pertencemos a uma comunidade global - a Igreja Greco-Católica e a Igreja Católica espalhadas pelo mundo, há um sentimento de apoio. Para mim pessoalmente, como um sacerdote, isso é muito importante," concluiu o padre.
* tradução livre