sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Ratio Studiorum. O pó de ouro dos jesuítas


          Numa época em que as pessoas tanto falam em educação, que governos e organizações traçam grandes planos pedagógicos a nível nacional e que meios de comunicação exortam a todos que contribuam para seu desenvolvimento, passa completamente esquecido aquele que foi, talvez, o maior plano educacional de todos os tempos. Provavelmente não só o maior, mas também o mais bem-sucedido em seus frutos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.

          Estou falando da Organização e Plano de Estudos da Companhia de Jesus, conhecido como Ratio Studiorum – resumo de seu nome latino, Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu – organizado e compilado definitivamente em 1599 após uma série de experiências pedagógicas de dezenas de colégios que a Companhia possuía na Europa e no mundo.

          Foram em torno de cinquenta anos entre a fundação do primeiro colégio jesuíta plenamente organizado em Messina, em agosto de 1548, até a Ratio de 1599, tempo que abrangeu não apenas a larga experiência pedagógica acumulada em diversos locais do mundo, como também sintetizou aquilo que era considerado o mais belo e perfeito tanto para a educação quanto para a salvação das almas e a glorificação de Deus.

          Através de comissões designadas por Santo Inácio de Loyola e seus primeiros sucessores e colaboradores, como os padres Jerónimo Nadal, Diogo Ledesma e Cláudio Aquaviva, uma série de estudiosos extremamente sábios, eruditos e piedosos se empenharam em compor um plano pedagógico que incorporou o pensamento clássico de Grécia e Roma, com destaque à filosofia e à retórica, a filosofia medieval, particularmente a escolástica e o método disputatio da Universidade de Paris, e a cultura renascentista alinhando essa magnífica herança com a revelação e a tradição cristã emanadas das Sagradas Escrituras.

          A seleção não era aleatória e baseada unicamente na experiência pois, como afirmado, ela se fundamentava na fé católica e de seus valores derivados. A pedagogia visava o desenvolvimento integral dos alunos, valorizando primeiramente a linguagem e a capacidade de expressão, ao exemplo do estudo dos gramáticos e retóricos da Antiguidade – literatos pagãos não apenas eram utilizados como também muito bem-vindos nos estudos devido à eficácia de seus ensinamentos e o bem que resultava para o crescimento pessoal -, seguido por todo o conhecimento histórico, cultural e mesmo de ciências experimentais. Cumprida essa longa e paulatina trajetória, o aluno possuía pleno domínio da linguagem e estava apto a se empenhar na Filosofia e na Teologia, consideradas as ciências mais elevadas no mundo ocidental.

          A concepção de desenvolvimento integral da pessoa transcendia, e muito, a definição limitada de homem para os pagãos ou de cidadão para a sociedade moderna, pois sua visão se baseava no homem como filho de Deus, cuja origem e destino são a eternidade. Isso implicava que o conhecimento e a reta educação fossem meios de contemplação da Criação divina e uso dos dons por Ele inculcados em cada um de nós. Como lembra o Pe. Leonel Franca, citando o Papa Pio XI, a pedagogia cristã visa o “homem sobrenatural que pensa, julga e opera constante e coerentemente, segundo a reta razão iluminada pela luz sobrenatural dos exemplos e da doutrina de Cristo; ou, por outras palavras, é o verdadeiro e o perfeito homem de caráter”.

          A impressionante disseminação das escolas jesuítas pela Europa e o mundo mostra não apenas o empenho, mas a validade e a eficiência do que se propunha. Quando promulgada a Ratio Studiorum em 1599, a Companhia de Jesus possuía 245 colégios; em 1773, ano que a Igreja Católica suprimiu a Ordem por pressão política, eram 865 estabelecimentos de ensino em todo o mundo, a maioria colégios, com milhares de alunos e uma tradição educacional consolidada e reconhecida, inclusive pelos críticos dos jesuítas e da Igreja.

          Talvez alguns dissessem que a pedagogia jesuíta fora por demais “humanista” ou “contaminada” pela mentalidade moderna com a chegada dos século XIX, XX e XXI particularmente pela ascensão da ciência moderna e a ingerência dos Estados-nacionais em seus currículos. Santo Inácio já previa que os colégios da Companhia deveriam se adaptar às regionalidades e necessidades, práticas e legais, onde atuassem. Apesar dos percalços e mesmo perseguições, a simples existência de um legado histórico e cultural, principalmente em regiões em que a cristianização e a educação jesuítas foram determinantes na formação e coesão de sociedades inteiras, como no Brasil, mostra que esse empreendimento não é apenas valoroso como concretamente verdadeiro. Em algum grau, os jesuítas alcançaram o ideal almejado. 

          Se hoje notamos a destruição do que há de mais elevado, certamente uma das razões foi o esquecimento, por parte da esmagadora maioria dos educadores e professores, desse pó de ouro depositado no fundo do baú que é a Ratio Studiorum. O que foi válido no passado também o é para o presente e o futuro, pois o fundamento sobre o qual se fincou esse grande empreendimento pedagógico da Companhia é eterno. Suas propostas visavam o homem sobrenatural, que não muda com a mudança dos tempos.

 

Fonte:

FRANCA, Leonel S. J. O Método Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum. Edições Hugo de São Vítor. Porto Alegre, 2019.   


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