Numa época em que as pessoas tanto falam em educação, que governos e organizações traçam grandes planos pedagógicos a nível nacional e que meios de comunicação exortam a todos que contribuam para seu desenvolvimento, passa completamente esquecido aquele que foi, talvez, o maior plano educacional de todos os tempos. Provavelmente não só o maior, mas também o mais bem-sucedido em seus frutos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
Estou falando da Organização e Plano de
Estudos da Companhia de Jesus, conhecido como Ratio Studiorum – resumo de seu nome latino, Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu – organizado e
compilado definitivamente em 1599 após uma série de experiências pedagógicas de
dezenas de colégios que a Companhia possuía na Europa e no mundo.
Foram em torno de cinquenta anos
entre a fundação do primeiro colégio jesuíta plenamente organizado em Messina,
em agosto de 1548, até a Ratio de
1599, tempo que abrangeu não apenas a larga experiência pedagógica acumulada em
diversos locais do mundo, como também sintetizou aquilo que era considerado o
mais belo e perfeito tanto para a educação quanto para a salvação das almas e a
glorificação de Deus.
Através de comissões designadas por
Santo Inácio de Loyola e seus primeiros sucessores e colaboradores, como os
padres Jerónimo Nadal, Diogo Ledesma e Cláudio Aquaviva, uma série de estudiosos
extremamente sábios, eruditos e piedosos se empenharam em compor um plano
pedagógico que incorporou o pensamento clássico de Grécia e Roma, com destaque
à filosofia e à retórica, a filosofia medieval, particularmente a escolástica e
o método disputatio da Universidade
de Paris, e a cultura renascentista alinhando essa magnífica herança com a
revelação e a tradição cristã emanadas das Sagradas Escrituras.
A seleção não era aleatória e baseada
unicamente na experiência pois, como afirmado, ela se fundamentava na fé
católica e de seus valores derivados. A pedagogia visava o desenvolvimento
integral dos alunos, valorizando primeiramente a linguagem e a capacidade de
expressão, ao exemplo do estudo dos gramáticos e retóricos da Antiguidade –
literatos pagãos não apenas eram utilizados como também muito bem-vindos nos
estudos devido à eficácia de seus ensinamentos e o bem que resultava para o
crescimento pessoal -, seguido por todo o conhecimento histórico, cultural e
mesmo de ciências experimentais. Cumprida essa longa e paulatina trajetória, o
aluno possuía pleno domínio da linguagem e estava apto a se empenhar na
Filosofia e na Teologia, consideradas as ciências mais elevadas no mundo
ocidental.
A concepção de desenvolvimento
integral da pessoa transcendia, e muito, a definição limitada de homem para os
pagãos ou de cidadão para a sociedade moderna, pois sua visão se baseava no
homem como filho de Deus, cuja origem e destino são a eternidade. Isso
implicava que o conhecimento e a reta educação fossem meios de contemplação da
Criação divina e uso dos dons por Ele inculcados em cada um de nós. Como lembra
o Pe. Leonel Franca, citando o Papa Pio XI, a pedagogia cristã visa o “homem
sobrenatural que pensa, julga e opera constante e coerentemente, segundo a reta
razão iluminada pela luz sobrenatural dos exemplos e da doutrina de Cristo; ou,
por outras palavras, é o verdadeiro e o perfeito homem de caráter”.
A impressionante disseminação das
escolas jesuítas pela Europa e o mundo mostra não apenas o empenho, mas a
validade e a eficiência do que se propunha. Quando promulgada a Ratio Studiorum em 1599, a Companhia de
Jesus possuía 245 colégios; em 1773, ano que a Igreja Católica suprimiu a Ordem
por pressão política, eram 865 estabelecimentos de ensino em todo o mundo, a
maioria colégios, com milhares de alunos e uma tradição educacional consolidada
e reconhecida, inclusive pelos críticos dos jesuítas e da Igreja.
Talvez alguns dissessem que a
pedagogia jesuíta fora por demais “humanista” ou “contaminada” pela mentalidade
moderna com a chegada dos século XIX, XX e XXI particularmente pela ascensão da
ciência moderna e a ingerência dos Estados-nacionais em seus currículos. Santo
Inácio já previa que os colégios da Companhia deveriam se adaptar às
regionalidades e necessidades, práticas e legais, onde atuassem. Apesar dos
percalços e mesmo perseguições, a simples existência de um legado histórico e
cultural, principalmente em regiões em que a cristianização e a educação
jesuítas foram determinantes na formação e coesão de sociedades inteiras, como
no Brasil, mostra que esse empreendimento não é apenas valoroso como
concretamente verdadeiro. Em algum grau, os jesuítas alcançaram o ideal
almejado.
Se hoje notamos a destruição do que
há de mais elevado, certamente uma das razões foi o esquecimento, por parte da
esmagadora maioria dos educadores e professores, desse pó de ouro depositado no
fundo do baú que é a Ratio Studiorum.
O que foi válido no passado também o é para o presente e o futuro, pois o fundamento
sobre o qual se fincou esse grande empreendimento pedagógico da Companhia é
eterno. Suas propostas visavam o homem sobrenatural, que não muda com a mudança
dos tempos.
Fonte:
FRANCA, Leonel S. J. O
Método Pedagógico dos Jesuítas. Ratio
Studiorum. Edições Hugo de São Vítor. Porto Alegre, 2019.
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