sábado, 22 de outubro de 2016

Russos, livros e bebidas: testemunhos de um estereótipo

(Rússia e vodka: combinação que não é exatamente um estereótipo.)

Quem acompanha brevemente meus escritos na internet sabe que tenho o blog "A Rússia e o Mundo" onde publico análises e comentários sobre política, história e cultura da Rússia. Para tentar entender um pouco realmente que país é este e quem são os russos (tanto em sua concepção étnica quanto nacional, como didadicamente distingue Angelo Segrillo no seu livro "Os Russos"), busco acompanhar alguns eventos que tratam de temas a respeito da cultura. E ainda por cima encarei o desafio de aprender a língua russa.

Comecei as aulas de russo em agosto deste ano. Minha professora Elena é diretora do Instituto Cultural Russo. Nossas aulas ocorrem uma vez por semana, salvo percalços criados pela agitada agenda da professora.

(Letras e fonéticas do alfabeto russo.)

A primeira dificuldade é conhecer o alfabeto cirílico. O mais complicado no aprendizado para quem fala português não é, no meu entender, conhecer as trinta e três letras do alfabeto (alguma extremamente esquisitas, como o "jé", cuja escrita é um asterisco de seis pontas, ou o "iú", escrito como IO vinculados por um traço), e sim não confundir a letra de forma com a fonética em português. Por exemplo: a letra "H" tem som de "N" em português; o "N" invertido tem som de "I"; o "B" de "V", "Y" de "U"; e a escrita similar ao número "3" som de "Z". Tornar estas associações natura naturais sem confundir com a fonética do português dá frequentes curto-circuitos nos meus neurônios. 

(Entre os russos é comum os encontros serem acompanhados pela vodka, cujo hábito é não tomar só.)

Mas como boa russa que minha professora é, natural da cidade de Krasnoiarsk no sul da Rússia, ela nos ensinou uma das coisas mais comuns do país: as bebidas. Estão lá os vinte nomes de bebidas listados em russo no meu caderno, da água ao conhaque. Elena nos contou que a imagem do russo beberrão de vodka é verdadeira, e que nos encontros sociais é extremamente comum o uso da bebida. É "tradição" entre os russos tomar a vodka em três pessoas, e a razão é bastante prática: depois de muitas doses alguém acaba tonto, incapaz de sair caminhando por aí, restando dois para ajudar. É comum ver na rua duas pessoas carregando um bêbado, como também são comuns os casos de atropelamento de pessoas sob efeito do álcool. Inclusive é pouco educado recusar uma bebida quando se é convidado a um encontro. Ser russo é estar realmente familiarizado com a vodka.

(Uma das vitrines da Rússia, São Petersburgo possui arquitetura essencialmente europeia. Em destaque a cúpula dourada da Catedral de Santo Isaac, de estilo neoclássico, ao contrário do bizantino das demais igrejas ortodoxas.)

Outro exemplo do comportamento dos russos tive na semana passada quando assisti a uma aula ministrada pela professora de literatura russa da UFRGS Denise Regina de Sales sobre a cidade de São Petersburgo.  O tema era a cidade pela ótica de dois ex-moradores e famosos escritores: Nikolai Gogol (1809-1852) e Fyodor Dostoyevsky (1821 - 1881). Fui ao encontro mais atraído em conhecer a história da cidade do que a visão que seus famosos escritores tinha dela, cujas obras, confesso com um pouco de vergonha, ignoro por completo. Interessante notar que esta cidade, fundada em 1703 pelo czar Pedro, o Grande, rivaliza com Moscou não só como capital histórica do país, mas também por suas associações simbólicas e culturais. São Petersburgo é a cidade masculina, ocidentalizada, aberta, jovem; Moscou é a cidade feminina, propriamente russa, reservada e mais antiga.

       
                  (Gogol e Dostoyevsky: ex-moradores de São Petersburgo dão vida à cidade.)

Enquanto ouvíamos os trechos dos autores lidos pelos alunos da aula entrávamos e imaginávamos as cenas às quais Gogol e Dostoyevsky nos transportavam. Tive de ler dois trechos deste último, e fiquei impressionado com o mergulho que o leitor fazia no corpo do personagem bem como no ambiente físico. Brinquei por um momento que o aprisionamento emocional descrito pelo personagem de Dostoyevsky era angustiante e me levaria a ficar sem ar. Infelizmente não me recordo da fonte dos trechos. De qualquer forma a experiência foi muito válida porque me ajudou um pouco a ter uma breve ideia da dimensão do impacto da literatura russa do século XIX no mundo todo.  e de minha ignorância sobre o tema.

(Pushkin: orgulho nacional.)

O que também chamou minha atenção foi, segundo os relatos, o valor que os russos dão à literatura e à cultura do país. Além da professora, muitos alunos já estiveram na Rússia. Um dos presentes comentou em dado momento que um amigo(a) em viagem ao país contemplou o busto de um homem num local público. Depois perguntou a uma pessoa próxima de quem se tratava. A pessoa ficou assombrada com a ignorância da pergunta. Ela não entendia como alguém não sabia de quem era a representação. O busto era do poeta Alexander Pushkin (1799-1837), nascido em Moscou e falecido em São Petersburgo, considerado pelo russos o maior de todos os seus escritores. Na medida em que a pessoa explicava à visitante quem era Pushkin, apareceu um policial para ver o que estava acontecendo. Mas o policial foi tragado pela conversa. Depois vieram outras pessoas e mais outras formando um aglomerado de indivíduos que discutiam em grupo quem era Pushkin. Isso denota que o poeta tem alguma fama em seu país de origem. Diria, pelos comentários da professora e dos alunos, muita fama.

É claro que os relatos acima não resumem quem são os russos, nem dão forma acabada a este povo. Associar russos com vodka e literatura é mais ou menos como associar brasileiros à samba e futebol. É uma associação meramente popularesca. Diz pouco sobre a sociedade, ou mesmo distorce sua verdadeira identidade. Vodkas à parte, quem dera fôssemos também nós apaixonados pelos intérpretes de nossa pátria, e não unicamente pelas diversões passageiras. Faria um bem danado à nossa mentalidade e à auto-estima. Mas resgatar uma cultura que foi substituída pelas paixões mais superficiais e efêmeras será um trabalho que levará gerações.

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