sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Conhecimento muito além de opiniões: a busca por verdades cruciais

(A vida possui muitas "pergunta cruciais", aquelas cuja resposta depende de um profundo esforço pessoal e fazem a diferença quando encontradas. Na foto: Biblioteca Nacional da República Tcheca, em Praga.)

Recentemente foi publicado no Youtube o áudio de uma aula do filósofo Luiz Gonzaga de Carvalho Neto realizada em 4 de junho de 2008. A aula era direcionada a funcionários de uma instituição, cujo nome não é revelado. Essa situação exigiu de Luiz Gonzaga uma breve observação no início de sua fala: todas as pessoas têm necessidade de algum conhecimento, mesmo para as coisas mais básicas do cotidiano. Mas quando esta necessidade logo é sanada, o interesse pelo conhecimento é abandonado. Dar uma aula para funcionários implicava se colocar no desafio de instigar alunos que, em princípio, não estavam lá por interesse genuíno no conteúdo, e sim para cumprir deveres profissionais ou evitar uma punição por não cumprimento da norma.

O tema da aula era a relação entre estudo e conhecimento. Luiz Gonzaga inicia sua apresentação diferenciando quatro tipos de conhecimento: aquele que utilizamos para fins meramente objetivos, como escovar os dentes, dirigir um carro, passar num concurso, etc; o que exige um aperfeiçoamento periódico, como aquele buscado por médicos, professores, cientistas, etc, preocupados em melhorar sua vida profissional; o conhecimento que é buscado com a finalidade de encontrar uma resposta específica e fazer disso uma carreira para a vida toda, como fazem escritores, filósofos, determinados cientistas empenhados na descoberta de cura para doenças ou o desenvolvimento de determinadas tecnologias; e o conhecimento voltado (este mais raro) para uma completude pessoal, para engrandecer a alma e fazer com que a pessoa sinta-se mais completa como ser humano.

(Segundo Luiz Gonzaga, grande parte do conhecimento é voltado para fins meramente utilitários, no máximo para aperfeiçoar habilidades profissionais.)

A esmagadora maioria das pessoas no mundo, e no Brasil em particular, dedicam-se às duas primeiras formas de conhecimento. Acontece que esta massa pára por aí, não indo além daquilo que é estritamente necessário saber ou para melhorar seu desempenho profissional. Isto faz com que as pessoas jamais passem do nível da opinião na esmagadora maioria dos assuntos, e que aqueles dedicados à sua especialidade profissional se tornem, no máximo, bons profissionais especializados na sua área.

(O conhecimento voltado às "perguntas cruciais", às quais determinadas pessoas dedicam toda uma vida a respondê-las, deixa um legado às gerações futuras. Na foto, catedral anglicana de Saint Paul, em Londres: símbolo da cidade, estrutura imponente, bela arquitetura e técnica revolucionária de construção para o século XVI.)

As pessoas dedicadas a responder questões pertinentes da nossa vida (que Luiz Gonzaga chama de "perguntas cruciais"), como os grandes problemas filosóficos, os melhores meios de organizar a sociedade ou de encontrar respostas para problemas pessoais ou coletivos, são aquelas que saltam da mera opinião e passam ao conhecimento. Luiz Gonzaga retoma os termos gregos doxa e episteme, que significam "opinião" e "conhecimento", respectivamente, para explicar que o primeiro dá um salto qualitativo para o segundo quando é submetido ao crivo de todas as perguntas e experiências que estão em posse do questionador. Quando um cientista, por exemplo, quer inventar um equipamento que ninguém inventou ele busca meios de superar as experiências anteriores que tentaram cria-lo sem sucesso. Isto quer dizer que tudo o que feito pelo homem foi antes pensado para depois ser aplicado, isto é, passou da mera opinião para o conhecimento e daí a sua aplicação na realidade. Os princípios que regem um sistema político, as grandes religiões (dada suas manifestações humanas) e todo o qualquer produto industrial foi antes pensado e depois aplicado, e eles hoje só existem porque são os melhores resultados de todas as experiências anteriores em seus respectivos campos.

Em grande parte do vídeo Luiz Gonzaga relaciona a capacidade humana de conhecer com a democracia. Neste texto não vem ao caso esta problemática, mas cabe aqui destacar um ponto: uma democracia só é viável, segundo o filósofo, porque há pessoas que são capazes de superar sua mera opinião e testá-la no mundo real, isto é, transformá-la em conhecimento. Nenhum povo pode exercer pressão real sobre seus governantes com o objetivo de melhorar sua condição social se não for capaz de mostrar que sua ideia é melhor do que "aquilo que está aí" e que vai muito além da mera vontade, como vemos nas reivindicações por melhores salários, "mais educação", "mais segurança", etc. Isto pressupõe um meio de alcançar a esfera de poder, já que o governante, por mais ignorante que seja, em algum momento analisou seriamente a possibilidade de como chegar lá, transformando sua mera vontade em realidade de fato. Os governados incapazes de transformar sua opinião em conhecimento consistente sobre um assunto qualquer será sempre tratado pelos governados como crianças. Alguém que, por exemplo, saiba como realmente melhorar o atendimento da saúde pública terá muito mais legitimidade e influência no sistema político do que se fizer apenas barulho reclamando por aquilo que acha que é melhor. Nenhum governo terá a legitimidade necessária para governar se sua ação não for contestada por alguém que realmente conhece os assuntos pertinentes à vida cotidiana dos indivíduos. Não há democracia se não há um número mínimo de pessoas, uma verdadeira aristocracia capaz de apresentar projetos reais para a vida, se não de todas, ao menos da grande maioria das pessoas.

(Uma vida dedicada às "perguntas cruciais" levará ao encontro de "verdades cruciais" que estarão acima da esfera das meras opiniões e ficarão como legado para outras pessoas em diversas esferas da sociedade.)

O mais importante de tudo, porém, não está nos efeitos do conhecimento na esfera política. Dedicar-se ao conhecimento, à busca da dúvida que paira sobre nossa cabeça durante grande parte de nossa vida, mexe, antes de tudo, com nossa vida pessoal. Alguém que tem uma pergunta crucial e se dedica verdadeiramente a responde-la está dando sentido à sua própria vida. Não importa se este interesse é em contribuição às outras pessoas ou para alcançar a plenitude enquanto ser humano; o que importa é a busca em si, cujo resultado dará sentido à sua existência. Ter um interesse real sobre algo é um sinal de que este algo lhe diz respeito verdadeiramente. Cabe a esta pessoa, portanto, responder à pergunta que lhe é pertinente. Não importa se o alvo é a busca por uma vacina contra a AIDS ou os critérios para educar corretamente os filhos. É a dedicação pela busca às respostas que levarão à descoberta daquilo que Luiz Gonzaga mencionou como "as verdades cruciais da vida humana". "Nem que seja uma só", completou o filósofo.

Viktor Frankl, fundador da logoterapia, fez exatamente esta busca. Ele suportou a prisão  nos campos de concentração nazistas porque tinha dois objetivos de vida: reencontrar sua mulher, a qual perdeu contato com a prisão, e continuar seus trabalhos no novo ramo de conhecimento que viria a fundar. Sua mulher morreu num dos campos de concentração, mas sua pesquisa, que veio a desembocar na logoterapia, deu rumo à sua vida. Desconheço as razões que levaram Frankl a continuar atuando na psicologia (talvez seu livro de memórias ajude a responder esta pergunta), mas certamente sua atividade científica era busca por respostas a perguntas que ele antes havia formulado. A prova da veracidade desta busca está no livro Em Busca de Sentido, onde ele explica como o desejo de continuar suas pesquisas na psicologia o motivaram (e deram sentido) a continuar vivo.

(Para Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, só é possível responder às "perguntas cruciais" individualmente, e o encontro dessas respostas faz a vida valer à pena.)

No final da aula, Luiz Gonzaga diz que as descobertas sobre questões cruciais da vida humana só podem ser feitas pela consciência individual. "Isso é único", diz ele sobre a busca. "O que torna a gente único... são as respostas que a gente pode oferecer às pessoas." A descoberta às questões cruciais inserem-se numa sequência de respostas já dadas. O importante, portanto, não é dar respostas novas a um velho problema, e sim reatualiza-lo, trazê-lo novamente ao momento presente, reforçá-lo na consciência das pessoas. Encontrar essas respostas é crucial para apostar a vida em algo que valha à pena, é dedicar-se a algo maior do que nós mesmos e que será legado para a gerações futuras. É auto-transcender-se, como diz Frankl, e é na auto-transcendência que está o sentido da vida, em algo fora, maior e mais elevado do que nós. Como conclui Luiz Gonzaga: "Isto é para você terminar a sua vida e falar: 'foi bom!'" Uma vida que foi existencialmente boa é uma vida plena de sentido.

Infelizmente há uma segunda parte da aula que não está disponível no Youtube. De qualquer forma esta lição de vida é inspiração para ampliar nossos horizontes e, por que não, legar às pessoas com as quais vivemos respostas que elas gostariam de ter mas são incapazes de possuir. Isto é mais do que ser um aristocrata. É ser bom.

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